AGRICULTURA FAMILIAR EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS
O ALIMENTO COMO ATO POLÍTICO

Desde 2020, o aceso a crédito para agricultura familiar vem diminuindo a cada ano em São José dos Campos. No rítmo atual, a produção deve deixar de ser financiada em 2025
É manhã de uma sexta-feira no Sítio Guajuvira, dia de colheita. Altamir Bastos, de 54 anos, e sua esposa vão colher couve, cenoura, beterraba, salsinha, cebolinha, alface, chicória ... a lista é longa. No dia seguinte, na Praça Central de São José dos Campos, já muito longe da pequena propriedade na zona norte da cidade, todos esses alimentos devem estar dentro de uma cesta para serem entregues aos coagricultores do sítio. É assim que Altamir prefere chamar aqueles que, normalmente, seriam definidos como seus clientes.
“Não chamo de clientes porque é como se o sítio aqui fosse uma extensão da casa deles, né? Então eu sempre digo que a cozinha da casa dos nossos coagricultores é uma extensão daqui. Ou que nós somos uma extensão da cozinha deles, na verdade”
A mudança na nomenclatura faz sentido, uma vez que o sítio Guajuvira opera por meio de um modelo de produção inovador e pouco conhecido – o CSA, ou Comunidade que Sustenta a Agricultura. Nesse sistema, a relação entre produtores e consumidores é direta, sem intermediários.
“Essa comunidade de grupo de famílias nos financia, eles nos escolheram para produzir seu alimento. Na prática, a gente monta um orçamento anual que leva em consideração todas as necessidades econômicas de sustento do sítio. As famílias pagam cotas mensais e todos os sábados é feita a entrega das cestas” explica Altamir.
As cotas pagas pelas famílias cobrem as necessidades do sítio, seja para custo de irrigação, compra de adubo e mudas, manutenção de trator, cerca, além de cobrir as contas, como de internet e luz.
Atualmente, 32 famílias são atendidas pelo sítio Guajuvira.
A família de Rosa Scaquetti, moradora de São José dos Campos, é uma delas. Ela se tornou coagricultora em 2020, motivada pela busca de uma alimentação mais saudável e pelo desejo de apoiar a produção local da cidade. "Escolhi ser coagricultora porque eu estava procurando consumir orgânicos por uma questão nutricional, de saúde."
A produção familiar de Altamir ocorre em sistema agroflorestal, e todos os alimentos entregues aos coagricultores são orgânicos, com garantia definida por meio de uma certificação participativa. Os próprios agricultores da região, incluindo Altamir, criaram uma associação e a credenciaram no MAPA (Ministério da Agricultura e Pecuária) em Brasília. Depois de uma longa jornada, essa associação se tornou apta a fazer a certificação de orgânicos, seguindo as normas estabelecidas pela legislação.
“Muitos de nós, agricultores, pensamos que nem deveríamos mais precisar justificar se é orgânico ou agroecológico, porque essa deveria ser a forma natural de se produzir. Mas somos nós que temos que provar e ainda pagar para ter uma certificação. Agora, quem usa veneno de forma indiscriminada não precisa justificar nada, não é?”
Mas não foi apenas o fator saúde que motivou Rosa. “Eu também queria fortalecer a economia local. Sempre tive essa preocupação de comprar diretamente dos pequenos agricultores.” Rosa explica que, após tornar-se coagricultora, passou a frequentar mensalmente o sítio Guajuvira com seu companheiro, seu filho e seu sobrinho. Essa aproximação mudou a relação e a percepção da família com relação ao ambiente rural da cidade.
“A gente também passou a se integrar com questões políticas, se aproximando um pouco mais do que é o mercado de produção agrícola aqui, e passamos a defender e ajudar a expandir esse tipo de produção", comenta Rosa.
Marcelo Cunha é engenheiro ambiental e trabalha com hortas urbanas em São José. Para ele, a escolha de Rosa é um exemplo claro de como o consumidor pode escolher onde colocar seus recursos financeiros para potencializar os pequenos produtores.
“A gente, como consumidor, decide onde coloca os nossos recursos financeiros, como ao comprar do pequeno produtor. Ou, então, compramos de uma rede de supermercados, sem saber quem produz o nosso alimento, de que forma é produzido, como é transportado e cuidado até chegar à nossa casa.”
Segundo o engenheiro, a relação desenvolvida entre os coagricultores e o sítio de Altamir ajuda a aproximar o cidadão urbano da realidade dos que vivem e produzem na área rural. Os 12 quilômetros de distância que separam o sítio Guajuvira, na área rural, da região urbana do município podem até parecer menores dessa forma.
“Com distanciamento das pessoas do meio urbano em relação a nós, a cidade não está ciente das dificuldades que nós estamos tendo, seja na ordem econômica, seja da ordem climática. Na ordem econômica, têm as dificuldades que nós temos de acesso a crédito, os custos de produção cada vez mais alto, por exemplo”
“Comprar alimento é um ato político. A gente têm um poder muito grande na nossa mão e não sabemos usar”

Mais problemas, mais necessidade de crédito
ACSA (Comunidade que sustenta a agricultura) surge, acima de tudo, como uma tentativa de sobrevivência por parte dos pequenos produtores para fugir do endividamento e falência. Isso eles enfrentam alguns desafios na hora de escoar e comercializar a produção a um preço justo e de forma regular.
Altamir conta que está fadado ao fracasso, por exemplo, se tentar vender de forma direta para redes de supermercado e feiras, setores que são abastecidos pelos pequenos produtores, mas dominados pelos chamados atravessadores.
Os atravessadores são agentes de comercialização que atuam nas cadeias produtivas como intermediários entre os produtores e os consumidores
“Hoje, se você for às feiras aqui em São José dos Campos, 99% dos feirantes são atravessadores, não agricultores. Eles vão ao Ceagesp, compram e revendem”, afirma.
A situação não é diferente nas redes de supermercados ou mercados tradicionais, os quais dificultam a entrada do pequeno produtor e impõe preços. Assim, os atravessadores acabam intermediando o repasse da mercadoria.
“E o preço final não vai se alterar, o que vai mudar é o valor que eu vou ganhar, para baixo. Então, se o supermercado fizer uma promoção, quem vai bancar essa promoção sou eu, não é o atravessador e não é o supermercado”, comenta.
2024 também trouxe novas dificuldades para o sítio Guajuvira. No início do ano, cerca de 20 famílias deixaram de comprar diretamente de Altamir - uma perda significativa que ele atribui tanto à redução da renda no meio urbano quanto à diminuição da produção.
“O preço do adubo, por exemplo, sobe a cada ano”, comenta. Além dos desafios econômicos, o agricultor já enfrenta os efeitos das mudanças climáticas que aumentam a quantidade de pragas no sítio. "Estamos tendo muitos problemas com formigas. Isso diminui muito a produção."
De acordo com a Assessoria de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a agricultura familiar é a mais vulnerável a perdas devido às mudanças climáticas, o que reforça a grande importância do acesso ao crédito rural. "O desafio é fazer com que todas as políticas tenham recursos suficientes e sejam acessíveis para atender à demanda e necessidade da agricultura familiar", afirma a CONTAG.
“Com certeza tem esse aspecto de que o Estado não nos financia. Apesar de que ele tenta informar a população de um modo geral: ‘Ah, liberamos 72 bilhões de reais para a agricultura familiar’, eu digo que mais de 90% dos agricultores familiares não conseguem acessar esses créditos”
DE QUASE 270 FAMÍLIAS EM SÃO JOSÉ, APENAS 5 TIVERAM ACESSO A CRÉDITO PELO PRONAF EM 2024
Fonte: Matriz de Dados do Crédito Rural

Realidade do Município
Essa reportagem investigou o que pode estar por trás da baixa de crédito na cidade, uma das principais causas está ligada ao cadastro no CAF (Cadastro da Agricultura Familiar), requisito obrigatório para solicitação de crédito. Dados obtidos junto ao MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar) mostram que, em 2024, das quase 270 famílias produtoras do município, apenas 50 estão cadastradas.
O Caf é um instrumento novo que, em 2022, substituiu o DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf). “A mudança de sistema pode ter representado um aumento das dificuldades do reconhecimento enquanto agricultor familiar com fins da administração pública”, esclarece Paulo Moruzzi, professor de sociologia rural no departamento de economia, administração e sociologia da Esalq.
Para a CONTAG, a falta de uma entidade que oriente as famílias na abertura do CAF também contribui para os desafios de acesso ao cadastro. Vale ressaltar que esse serviço não é oferecido pelo Ponto Rural do município, que está localizado na zona norte da cidade.
De acordo com a prefeitura de São José dos Campos, o Ponto Rural não tem relação direta com agricultura familiar e funciona como um poupatempo rural.
Falta de apoio técnico
Para o engenheiro ambiental Marcelo Cunha, falta apoio técnico para as famílias produtoras do município. O especialista destaca que a cidade não tem uma Casa da Agricultura, por exemplo, diferente de outros municípios, como Jacareí e São Bento do Sapucaí.
“Temos o Ponto Rural, que oferece serviços de regularização, mas eu eu vejo muito essas propriedades sendo regularizadas para que elas deixem de ser áreas produtivas e virem áreas de turismo", comenta.
Pelo que observou a partir de sua atuação no município, as regularizações das propriedades acontecem para transformá-las as em salões de festa e áreas de eventos, uma vez que os problemas de produção e escoamento causam mais perdas financeiras.
Marcelo também aponta a pouca oferta de cursos de nível superior e técnico na área agrícola na cidade, o que pode aumentar a evasão rural entre os jovens, que não conseguem dar continuidade ao trabalho rural após o envelhecimento dos pais.
“Hoje, em um município com quase 70% de área rural, não há curso de agronomia. Temos apenas a Unesp com um curso de engenharia ambiental. O curso técnico em agropecuária mais próximo fica em Jacareí, e o curso de agronomia mais próximo é em Taubaté."
Burocracia do agente financeiro
Deise Alves, uma das coordenadoras da Rede Agroflorestal do Vale do Paraíba, aponta que um outro fator que impede os agricultores familiares de acessarem o PRONAF é a burocracia exigida pelas cooperativas de crédito e agências financeiras.
Uma das principais exigências é o avalista, uma pessoa que se compromete a pagar uma dívida em caso de o devedor principal não conseguir cumprir com suas obrigações.
Deise conta que entrou com um projeto de financiamento em uma agência cooperativa de crédito e relata que a tentativa foi desanimadora. O seu projeto inicial de R$ 100.000,00 foi reduzido para R$ 34.500,00.
"Eu tentei um financiamento e estava com a ideia de comprar um trator, mas desisti. O banco queria um imóvel para servir de avalista ou uma pessoa com renda superior a R$ 120.000,00 por ano."
Produção da agricultura familiar joseense não abastece a merenda escolar do município
Todo ano, a federação repassa um valor à prefeitura, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), para a compra de alimentos destinados à merenda das escolas do município. Em 2024, dos quase 14 milhões que a prefeitura recebeu, nenhum valor foi usado para comprar da agricultura familiar joseense.
Seguindo a legislação do PNAE, que determina que os gestores educacionais locais utilizem, no mínimo, 30% dos recursos federais recebidos para adquirir produtos de agricultores familiares, a prefeitura destinou R$5.580.752,41 para comprar desse tipo de produção. No entanto, o investimento acabou indo para fornecedores de fora do município.
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e junto à prefeitura indicam que os produtos foram comprados de agricultores familiares dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Nesse último, as famílias beneficiadas estão nos municípios do noroeste do estado, da região metropolitana da capital, do Vale do Ribeira e no Vale do Paraíba.
A produção familiar de Pindamonhangaba foi a cidade mais beneficiada em valor de contrato, quase R$1 milhão e 500 mil reais.
De acordo com a assessoria da prefeitura, nenhum produtor do município se inscreveu na chamada pública do edital de venda para a prefeitura.
No passado, buscando alternativas para o escoamento da produção, Altamir chegou a vender diretamente para a prefeitura com destino à merenda escolar. No entanto, o que deveria ser a solução de um problema acabou criando outro, fazendo com que ele desistisse de participar dos editais.
Para ele, a demora no processo, os preços de logística para distribuição das mercadorias e o tipo de mercadoria requerida acabaram inviabilizando a participação.
Ele afirma que a compra de produtos processados, como suco, manteiga ou bananinha, é maior em relação a alimentos in natura, do tipo hortifruti. Ele afirma, também, que o processo pode durar até um ano desde a abertura do edital até o início das entregas. “A gente acaba desistindo por esses motivos”.
No edital consta que entrega dos alimentos é responsabilidade do produtor, o que leva a contratação do serivço terceirizado .Altamir relata que, na época em que vendia para a prefeitura, a chegada da pandemia aumentou o custo da logística devido ao aumento dos preços de combustíveis.
Como resultado, as empresas de distribuição, responsáveis pela retirada dos alimentos e entrega nas quase 200 escolas, elevaram o valor cobrado diretamente dos pequenos produtores. “As empresas estavam querendo cobrar em torno de 42% para fazer a entrega. Então, para nós, ficava inviável.”
Desde 2020, o acesso a crédito para agricultura familiar vem diminuindo gradativamente a cada ano em São José





Em 2021, foram fechados 14 contratos, sendo 11 para custeio e 3 para investimento
Em 2022, foram fechados 11contratos, sendo 6 para custeio e 5 para investimento
Em 2023, foram fechados 8 contratos, sendo 6 para custeio e 2 para investimento
Neste ano, foram fechados 5 contratos, sendo 1 para custeio e 4 para investimento
"Nesse rítmo, a produção da Agricultura Familiar de São José dos Campos deve deixar de ser financiada pelo PRONAF em 2025"
São José reflete um problema do país inteiro
Inadimplência, falta de assistência técnica e créditos concentrados são os principais fatores que impedem o acesso ao crédito no Brasil, afirma CONTAG
Em 2023, um estudo publicado pela Climate Policy Initiative realizou uma análise dos dados do Censo Agropecuário de 2017 e revelou que apenas 15% dos agricultores familiares conseguem obter crédito pelo PRONAF no Brasil. O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) é o principal programa do governo federal brasileiro que visa apoiar agricultores familiares. O plano safra de 2024/25 destina R$ 76 bilhões em crédito pelo programa.
Para a CONTAG, três são os principais fatores que impedem o acesso pelo Pronaf: inadimplência, falta de assistência técnica e crédito concentrado.
O endividamento entre os pequenos produtores é uma das grandes barreiras que impedem o acesso ao crédito. De acordo com dados da Agência Brasil, quase 30% dos produtores rurais estavam endividados no final de 2023.
"Se eu estou com meu nome sujo, por exemplo, a minha companheira já não pode acessar o crédito".
De acordo com a Assessoria de Política Agrícola da CONTAG, a disponibilização e contratação de crédito do PRONAF, por si só, além de não resolver as demandas, cria um grande problema para as famílias, pois elas não recebem acompanhamento técnico. Por esse motivo, muitas delas acabam em situação de inadimplência.
“Para que haja uma mudança nesse cenário, é necessária a criação de leis específicas para a renegociação de dívidas”, afirma a assessoria da CONTAG.
Apenas 18% dos estabelecimentos familiares têm orientação pela ATER
Outro grande fator é a falta de Assistência Técnica disponível. No Brasil, esse serviço é conhecido como Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). Trata-se de um conjunto de serviços oferecidos a produtores rurais, especialmente agricultores familiares, para promover o desenvolvimento rural sustentável, a melhoria da produtividade e a qualidade de vida no campo.
Fonte: CONTAG
Fonte: CONTAG
“Essa baixa cobertura de famílias atendidas ocorre principalmente por conta da drástica redução do orçamento destinado aos serviços de ATER, com recursos do governo federal, especialmente do MDA. Vale salientar que 2015 foi o ano com o maior orçamento, mais de R$ 630 milhões, enquanto, em 2019, o valor foi reduzido para menos de R$ 10 milhões”, detalha CONTAG.
Os serviços de ATER incluem não apenas a gestão do acesso às políticas públicas de crédito, mas também orientações técnicas sobre práticas agrícolas, manejo de recursos naturais, gestão de propriedades, além de capacitações e suporte para aumentar a eficiência na produção e comercialização de produtos.
Crédito está concentrado em poucas culturas
A concentração de crédito pelo Pronaf é um dos principais desafios para agricultores familiares no Brasil, apontam dados repassados pela assessoria de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
De acordo com a entidade, a distribuição do crédito do Pronaf está concentrada tanto em alguns produtos específicos quanto em determinadas regiões do país, o que limita o apoio financeiro para muitos produtores.
Na safra 2023/2024, encerrada em junho, o Pronaf destinou R$ 60,47 bilhões para o crédito rural, dos quais R$ 33,23 bilhões foram para custeio e R$ 27,24 bilhões para investimento. Contudo, a maior parte do custeio agrícola, cerca de R$ 18,18 bilhões, foi concentrada em apenas quatro culturas: soja, milho, trigo e café, que receberam 79,8% dos recursos e 80,7% dos contratos. No setor pecuário, o custeio somou R$ 15,05 bilhões, com 94% desse montante destinado à bovinocultura, abrangendo produção de leite e corte.
O cenário não foi muito diferente no crédito para investimento. Do total financiado para 152 produtos agrícolas, mais de 43% foram direcionados à aquisição de tratores, máquinas e equipamentos, frequentemente usados nas lavouras de soja, milho, trigo e café. Já o investimento pecuário, que abrange mais de 93 atividades, destinou mais de 54% dos valores também à bovinocultura.
Fonte: CONTAG
Fonte: CONTAG
Quem produz comida para os brasileiros?
Pouca terra, muita comida
Em todo o Brasil, a agricultura familiar corresponde a 77% de todos os estabelecimentos agropecuários. E mesmo ocupando 23% do total da área dedicada às atividades agropecuárias, domina a produção de muitos dos principais alimentos da mesa do brasileiro brasileiro.
A agricultura familiar também é respondável por grande parte da mão-de-obra no campo e ocupava, em 2017, 66,3% dos trabalhadores em atividade.
Na horticultura, dos 47 alimentos apresentados na tabela do censo, apenas 7 são produzidos predominantemente pelos não familiares (mandioquinha, beterraba, cenoura, cogumelos, milho verde em espiga, tomate estaqueado e mudas) e outros 40 são da produção familiar principalmente.
Marco Mitidiero
Marco Mitidiero
"O ethos camponês é produzir, a essência da família que está na terra é produzir alimentos"
Muita terra, pouca comida
Marco Mitidiero analisou dados do Censo de 2017, o último disponível, e produziu uma publicação, que posteriormente transformou em livro. Nesse trabalho, ele optou por classificar os estabelecimentos rurais em três categorias – pequenos, médios e grandes – com base no tamanho da propriedade, em vez de usar os termos convencionais como "camponês", "agricultor familiar" ou "agronegócio". A divisão foi feita da seguinte forma:
Os resultados apontam que uma enorme quantidade de alimentos cotidianos na mesa dos brasileiros é produzido nas pequenas áreas de terra , na faixa de até 200 ha. "Que é o campesinato, ou você pode chamar de agricultura familiar", comenta Marco.
No gráfico, quanto mais o ícone de legenda amarela que representa os pequenos se distancia dos outros, maior sua participação no abastecimento de comida. São poucas as produções alimentares em que proporcionalmente a grandes áreas são relevantes.
"Os produtos que os grandes e médios se destacam são o trigo em grão, por exemplo, arroz, laranja, feijão, milho, soja e cana de açúcar. É onde os grandes se destacam, que são as commodities"
Livro: Censo Agropecuário 2017, o que revela o censo do golpe
Livro: Censo Agropecuário 2017, o que revela o censo do golpe
Ficção: O agro é pop
O discurso é poderoso. Nas telas das TVs, nas propagandas e até no principal reality show do país, o agronegócio é pintado como o grande protagonista da alimentação no Brasil. Mas, por trás do slogan “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”, está uma realidade diferente.
A conversa sobre o livro do geógrafo Marco Mitidiero ajuda a entender quem realmente sustenta a mesa dos brasileiros. “Em 2010, o dado de que 70% da comida no Brasil é produzida pela agricultura familiar veio à público e aterrorizou o agronegócio. E essa é um informação concreta, fruto do censo agropecuário de 2006, que foi o primeiro a incluir dados especiais para a agricultura familiar”, afirma.
A afirmação parece simples, mas bate de frente com anos de construção ideológica. Segundo o professor, a máquina publicitária do agronegócio não poupou recursos para consolidar a imagem de um setor “pop” e essencial. “Se você mente uma vez, é uma mentira. Se você mente duas vezes, continua uma mentira. Se você mente três, eu começo a coçar a cabeça e começo a acreditar”.
E o impacto dessas narrativas é reforçado em cenários improváveis, como o BBB, um dos programas de TV mais vistos no Brasil, patrocinado pela JBS : “Você percebeu que toda edição do BBB tem um cara bonitão, que representa o agro de chapéu e fivela?É o cara do sucesso do agro”.
Mas o cenário real é outro. “O agronegócio, em termos reais, representa apenas 6% do PIB. Mas a ESALQ, de Piracicaba, criou um cálculo para inflar essa participação para 26%, é a multiplicação dos pães”, critica Mitidiero.
A propaganda, no entanto, não atua sozinha. Mitidiero relembra que o agronegócio tem um aliado poderoso - a política. O agro compõe a maior bancada de deputados e senadores da história, são 324 entre 513.
“Eles têm um poder político incomensurável e seguram essa mentira também nos termos das políticas públicas. É por isso que vai mais crédito para o agro e menos para a agricultura familiar”
No Brasil, a importância da agricultura familiar é histórica, porque o latifúndio, principalmente, já vem como uma política de estado por parte do Império. E a gente sempre observou que o latifúndio tem a intenção de literalmente explorar não só o meio ambiente ali, mas como as pessoas também. Já a agricultura familiar vem nessa perspectiva de estar inserida em um ecossistema, sem exploração da área e de pessoas, onde a mão de obra é familiar e ela trabalha com diversidade na produção de alimentos. Nós não produzimos commodities ou alguma mercadoria para a exportação, produzimos alimentos
Altamir

